Existem autores que escolhem retratar o mundo a partir de imagens panorâmicas, de descrições de fenômenos político-sociais de grande abrangência – mostrando as consequências de tais contextos em nível individual ou em pequenos grupos. Outros fazem exatamente o contrário: partem de um microcosmo para demonstrar situações bem mais amplas, mesmo sem citá-las diretamente.
O mais recente romance do escritor Luiz Ruffato, O Verão Tardio, se encaixa nessa segunda vertente. A partir da história de uma família do interior de Minas Gerais, a obra pode ser interpretada como um paralelo de um país dividido, no qual traumas históricos não resolvidos levaram a uma crise político-institucional que já perdura quase meia década.
Ao chegar à cidade de Cataguases de ônibus, vindo de São Paulo após 20 anos de ausência, o protagonista e narrador do romance, Oséias, é acordado pelo cobrador em meio a um sonho, no qual se vê afundando nas areias de um deserto. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Seus irmãos continuam morando na cidade ou em suas redondezas, mas ele não avisou que estava chegando. Carrega apenas uma mochila e, desde o início do romance, se locomove pela cidade principalmente a pé. Isso dá sinais de que, mais do que uma visita a parentes, a viagem se assemelha mais a algum tipo de peregrinação.
Não demora muito para que se perceba que algo deu errado na vida do protagonista e que ele está ali, dentre outros motivos, em busca do passado. Assim, vai tentando reconhecer os prédios e lugares da cidade e procurando reencontrar, entre as histórias que ouve e os rostos que vê no meio da rua, pessoas com as quais conviveu antes de sair de lá, aos 20 e poucos anos.
E Oséias vai encontrando essas pessoas: a primeira namorada, o amigo que virou prefeito, o professor de artes, além dos irmãos. Primeiro visita Rosana, a irmã diretora de escola e casada com Ricardo, homem de negócios não muito claros. Ela orgulha-se de viajar aos EUA todos os anos e, quando não está trabalhando, frequenta a academia e se esforça para manter um rígido regime.
Conversando com sua sobrinha, Tamires, ele pergunta se a família convive com frequência. Sua resposta é sintomática da incomunicabilidade que ele vai vivenciando em suas andanças: “A tia Isinha é muito pobre pra gente, e o tio Jojo, muito rico…”, diz ela em tom de brincadeira, mas, ao mesmo tempo, fazendo uma revelação.
Ruffato faz com que os encontros de Oséias sejam narrados de maneira paralela com as histórias da família, de modo que as relações interpessoais e as motivações dos personagens vão sendo, aos poucos, iluminadas por seus contextos. É dessa dança entre passado e presente que emerge o melhor do romance: a percepção, que às vezes parece faltar aos próprios personagens, de que algo, em algum momento, deu errado para eles, e que isso não foi compreendido ou não se realizou o esforço necessário para corrigir tais erros.
Nesse jogo temporal, no entanto, nem sempre o autor acerta o timing, revelando demais para o leitor antes da hora certa, o que torna alguns trechos do romance um tanto previsíveis. O resultado final, no entanto, supera em muito essa dificuldade. Com personagens e uma dinâmica familiar construídos com esmero e uma bem-vinda contenção de emoções, Ruffato ainda nos presenteia com um mosaico de numerosos personagens secundários e de paisagens urbanas que representam muito do que ocorreu no Brasil nas últimas décadas.
A jornada de Oséias tem um tom que mistura melancolia e saudosismo, enquanto ele vai juntando os pedaços da vida que o fizeram chegar até ali, aos 56 anos, naquela condição: divorciado, sem contato com o filho adulto e vivendo de uma aposentadoria que mal dá para comprar seus remédios.
Ao se auto exilar dos problemas do passado por tantos anos, ele descobre que talvez seja tarde demais. A ausência de um empenho que tivesse buscado algum tipo de redenção mais consequente, pode ter feito com que ele e sua história – ou nós e nossa História –, ao invés de acordarem de um sonho ruim, sejam entorpecidos sob o domínio de um pesadelo real.