Publicado pela primeira vez em 1982, Morangos Mofados (que integra o volume Contos Completos), de Caio Fernando Abreu, retrata o momento histórico de ressaca de uma geração que teve a coragem de questionar, por meio da contracultura, os valores dominantes das sociedades ocidentais industrializadas, principalmente ao longo das décadas 60 e 70 do século passado.
E ressaca porque nesse período o Brasil continuava sob jugo dos militares, Lennon havia sido assassinado há pouco e Reagan e Tatcher ditavam os rumos econômicos do planeta. Os yuppies entravam em cena e o sonho havia acabado. Com o agravante de que a abertura das “portas da percepção” havia levado muitos à dependência química e à morte. “Meus heróis morreram de overdose”, cantava Cazuza.
Esse ambiente de decepção e falta de perspectivas é perfeitamente descrito em alguns dos melhores contos do livro. Em “Os sobreviventes”, um monólogo travestido de diálogo, expõe-se todo esse clima de fim de festa quando uma mulher reclama amargamente da partida de um grande amigo para o exterior, juntando essa perda iminente à rememoração de tantas outras que acumulou.
Já em “O dia em que Urano entrou em Escorpião”, a desesperança aparece sob a chave do humor, quando um grupo de três amigos que descansam tranquilamente numa noite de sábado – ouvindo Pink Floyd, lendo e comendo pescoço de galinha – é interrompido por um quarto colega, que chega empolgado, querendo atenção porque “Urano havia entrado em Escorpião”. Só que essa empolgação não dura, e logo revela o desespero sob a superfície.
Caio Fernando Abreu também tematiza a homoafetividade e o homoerotismo, mas, seguindo o contexto livro, essas histórias sempre vêm acompanhadas de certo mal-estar, que nesse caso resulta da homofobia, gerando ora violência física direta, ora exclusão social.
Alguns dos melhores contos do livro tratam desse tema, como é o caso de “Terça-feira gorda”, “Aqueles dois” e “Sargento Garcia”. Nesses casos, os contos assumem um estilo de narrativa mais direta, funcionando como denúncia social. Em um deles, “Aqueles dois”, o escritor até se permite uma espécie de final feliz, uma pequena vingança contra os preconceituosos de plantão.
Outra temática recorrente é a depressão, expressa em contos como “Luz e sombra”, “Transformações” e “Pela passagem de uma grande dor”. Neste último, o personagem está sozinho em casa, ouvindo uma música chamada “Desespero agradável”, quando recebe a ligação de uma amiga o chamando para sair. O diálogo, por telefone, parece o encontro de duas angústias, uma que prefere quedar-se anestesiada e outra que procura companhia.
Para além dos temas abordados, os contos que compõem o livro variam entre três opções narrativas principais: aqueles em que a história se desenrola de maneira mais direta, nos quais a fabulação por si mesma é o mais importante; outros nos quais a criação de uma ambiência é o que tem maior destaque; e outros em que a paisagem psicológica predomina.
Nesse último caso, é frequente um estilo mais voltado para uma prosa poética, com resultados por vezes delicados e muito bonitos, por vezes herméticos – como acontece em “Eu, tu, ele” e “Os companheiros” – o que deve afastar parte dos leitores. Os contos de Morangos Mofados, aliás, são bastante variáveis quanto à facilidade de acesso por parte do leitor médio.
A obra, no entanto, apresenta coesão em sua proposta de ressaltar o mal-estar de uma geração. Mas, é importante que se diga, o escritor não mostra, no entanto, um pessimismo que resulte em um beco sem saída puro e simples. A própria descrição de um novo estilo de vida – presente em suas páginas –, já demonstra que um novo mundo é possível.
Além disso, pequenas esperanças salpicadas aqui e acolá ao longo das histórias – companheirismo, novas formas afetividade e a possibilidade de encontro e reconhecimento no outro – levam à fresta de esperança apresentada no último conto, que tem o mesmo nome do livro: “Morangos mofados”. Nele, o personagem propõe: “será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos. Achava que sim”.
Ficha técnica:
Contos completos [1982]
Caio Fernando Abreu (RS, 1948-1996)
Companhia das Letras, 2018, 760 páginas
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