A narrativa é uma experiência universal, presente em todas as culturas e desde que o homem é homem. Através dela foram formulados os mitos de criação do mundo – as teogonias – e é por meio dela que damos forma aos nossos laços de identidade social. Mas ela também é instrumento de um uso mais subjetivo: as histórias que contamos sobre nós mesmos.
Pode parecer algo banal à primeira vista, mas contar-nos aos outros e à nossa própria consciência é, na verdade, uma espécie de imperativo da existência. A maneira como lidamos com nossas narrativas do passado é o que nos mantém – ou não – de pé. E a forma como projetamos nosso roteiro do futuro é o que nos faz querer continuar caminhando.
Por meio de três contos, protagonizados por pares de personagens (a intersubjetividade é fundamental na dinâmica de nossas histórias pessoais), Emilio Fraia constrói, com seu belo e melancólico Sebastopol, o que poderíamos chamar de um breve painel do impasse. Nele, encontramos pessoas cujas narrativas de vida estão em um momento de esgotamento e cabe a elas decidirem se querem ou se são capazes de construir novas.
A dinâmica dos contos é quase intimista e repleta de reflexões que misturam linguagem, vida e representação, envolvidas por um certo tom existencialista. Mas não se engane: os ecos dos acontecimentos ao redor dos personagens estão bem presentes, apesar de soarem às vezes discretos, às vezes misteriosos. Desse modo, o escritor nos deixa entrever as narrativas coletivas e o caos do mundo determinando boa parte da vida íntima de seus personagens, por mais que, em princípio, eles pareçam estar tão distantes, quase apartados da sociedade.
É assim no primeiro conto, por exemplo, no qual a narradora-protagonista, Lena, relata como decidiu virar montanhista e o seu projeto de, junto ao cineasta Gino, documentar sua escalada ao maior pico do mundo, o Everest. Entre idas e vindas temporais, descobrimos que algo deu errado e um acidente aconteceu, deixando sequelas que afetaram sua vida de maneira permanente.
Um dos trechos mais bonitos desse conto é aquele em que a protagonista compara o enrolar e desenrolar das bandagens de seus ferimentos ao enrolar e desenrolar de sua história pessoal, que ela conta infinitas vezes, até conseguir conviver com o trauma. Mas um dia a história relatada de modo tão recorrente perde sua força, e Lena parece se perguntar o que fazer frente a essa impermanência, que parece estar não apenas no mundo externo, mas também dentro dela mesma.
No segundo conto, o personagem Adán foi a um casamento no interior e, na volta, resolveu se hospedar em um sítio. E se deixou ir ficando. O dono da propriedade, Nilo, que um dia tentou transformar o sítio numa pousada, assume a função daquele que escuta, ao mesmo tempo em que espera encontrar, na narrativa de Adán, respostas para sua própria vida estagnada.
Mas Sebastopol não é um livro de respostas, nem de certezas. Adán, que achava que seu passado pertencia a uma outra vida, de repente revive identidades que haviam deixado de existir há muito: primeiro, a do filho em busca da memória de um pai morto misteriosamente; depois, a de um pai que teve o filho vítima de uma fatalidade. “Eu estou falando da morte, é claro. E de como vamos caindo, de tormento em tormento”, sentencia ele, preso a passados que nunca foram redimidos.
Na terceira história, uma jovem estudante que vivencia o luto pelo fim de um relacionamento se junta a um diretor de teatro famoso, mas fracassado, para produzir uma peça. Ambos lidam com a ficção para tentar superar dificuldades bem reais. A montagem encena a história do pintor Trúnov, que em meio ao Cerco de Sebastopol, gostava de retratar os soldados em momentos cotidianos de espera, jogando cartas, enquanto não sabiam seu próximo destino no teatro da guerra.
A dupla tem diferenças significativas de idade: Klaus é quase um idoso, Nadia é uma jovem de 20 e poucos anos. Depois da peça, eles se despedem como se uma geração passasse o bastão a outra. Mas existe uma herança a ser transmitida? Há uma narrativa capaz de superar o caos? Ou as histórias que contamos são como um quadro de Trúnov: servem apenas para suportar o intervalo entre uma barbárie e outra?