Piglia analisa os leitores e seus muitos motivos

Quando se diz que a arte – e nela inclusa a literatura – não tem função e não precisa ter, o que se quer expor, na verdade, é que a expressão artística não deve ser amarrada a missões ou objetivos utilitários ou preestabelecidos. E que a condição para a arte ser superior é justamente essa liberdade, que nos proporciona a fruição estética.

Mas a arte e, mais especificamente, a literatura tem muitas e variadas funções. Lê-se ficção para se distrair do mundo real. Lê-se para entender o mundo real. Lê-se para se entender ou se reconhecer. Lê-se para saber o que fazer ou para saber o porquê de se ter feito algo. Ou seja, para que a ficção tenha função, basta que o leitor queira dar uma a ela.

O que Ricardo Piglia acaba fazendo em seu livro de ensaios O Último Leitor (Companhia das Letras) é uma espécie de inventário não-sistemático dessas funções. Para isso, sua proposta é tão interessante quanto um bom enredo literário: analisar a figura do leitor a partir de suas representações em obras literárias de grandes escritores, como é o caso de Kafka e Tolstói.

Assim, descobrimos o porquê de Ana Kariênina estar lendo um “romance inglês” em um trem, enquanto voltava para casa. Ou então, por que Hamlet entra em cena com um livro nas mãos depois de seu encontro com o fantasma do pai. Ou, ainda, o motivo pelo qual o personagem Dupin, do conto inaugural do gênero de literatura policial – Os Assassinatos na Rua Morgue, de Edgard Allan Poe –, é nada menos que um intelectual, um grande leitor.

Piglia vai, então, dando chaves interpretativas para cada uma dessas obras, ou pelos menos para aspectos importantes delas. E não pára por aí, porque em alguns casos ele acaba também analisando a figura do leitor de seus próprios autores. Quem era o leitor Kafka? Qual a influência disso para sua obra? E quem era o leitor Borges, e quais as implicações dele para o universo ficcional que o escritor Borges construiu?

Outro personagem real abordado é o revolucionário argentino Che Guevara. Aliás, a foto desfocada da capa do livro é uma imagem dele, em cima de uma árvore, dando uma pausa nas atividades da guerrilha na Bolívia para ler um livro. Piglia nos conta que o Ernesto da juventude sonhava em ser escritor e explica o papel que a leitura teve em sua vida e nas decisões que tomou ao longo dela.

Assim, ele investiga as condições materiais e históricas desses leitores imaginários e reais, descreve os seus contextos sociais, os mitos e às vezes os preconceitos por trás da construção de suas imagens. Tudo isso, no entanto, não é feito de maneira sistemática. Não espere de Piglia aquele ensaísta acadêmico que propõe uma tese e vai construindo sua resposta como a um edifício bem projetado.

Ao invés disso, os seis ensaios que compõe o livro têm um estilo um tanto fragmentado, o que pode tornar a leitura um pouco menos fluida em alguns momentos, mas nada que tire o fascínio de suas análises. O desejo que me veio, ao invés disso, foi o de transformar as suas muitas citações em um longo roteiro de leitura e dar uma do leitor enciclopédico que está por trás de muito da obra de Jorge Luiz Borges – também analisado por Piglia.

Em tempo, o “último leitor” do título do livro é justamente aquele que faz da leitura mais do que uma mera distração, que se empenha na decifração dos livros que lê e “para quem a leitura não é apenas uma prática, mas uma forma de vida”. A grande literatura retribui essa dedicação, proporcionando não apenas o prazer estético, mas o desafio interpretativo que o potencializa ainda mais.

Ficha técnica:
O Último Leitor [2006]
Ricardo Piglia (Argentina, 1941-2017)
Companhia das Letras, 2006, 192 páginas

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